domingo, 27 de junho de 2010

Assim, assim...repetia pacientemente para si mesma, enquanto tentava equilibrar a fatia de salmão em cima de um panqueca minúscula.  Apenas mais um pouco e o martelo bateria o último lance. Era só a questão de apertar o gatilho ou pular do banquinho. Não via a hora de escafeder-se, pegar o beco, desertar...
A prima não aceitou desculpas, então ela precisou comprar um vestido novo, e o jantar estava muito bonito, muito gostoso, muito tudo de bom, mas havia aquela sensação incômoda de deslocamento, precisava ir embora. Mal pode esperar o jantar, e saiu antes da sobremesa.
Todos desconhecidos e fechados para qualquer outra coisa que não fosse eles mesmos. Doutores-Professores, titulados até à tampa, mas ela surpreendeu um deles num gesto quase humano alisando discretamente a parede principal (principal porque era a maior) na esperança de desfazer a dúvida quanto àquilo: se era uma pintura ou tapeçaria, ou até um desenho feito por algum homem das cavernas. Tal a quantidade de antiguidades, alguma coisa ali deveria ter vindo de uma tumba de faraó. Outro, deslizava pelo salão olhando os objetos decorativos como quem nunca tinha visto um vaso chinês ou alguma outra quinquilharia made in China.
- Está procurando o toilette, senhor? Desconfiado, o homem disse não e continuou de olhos baixos passeando por entre as luxuosas poltronas forradas de cetim marroquino (sei lá, estou inventando, ela desconhece a qualidade dos cetins). O segundo prato que resolveu comer consistia de cordeiro acompanhado de polenta, uma invenção dela entre tantas igaurias ali servidas, para deleite do chefe  Monsieur Shalon, encantado com a mistura sagaz que ela, criatura artística, atravessando a quilométrica mesa para compor a mistura inusitada. Mervilhouse, Madame. Inusitada.
Tomou mais uma taça de champanhe com cassis e estava ficando bêbada. Olhou para o degrau de mármore preto (deve ser carrara, não é?), dois, que teria de descer para atravessar o grand salon, despedir-se dos anfitriões, enquanto aquele xale de seda vermelho escorregava por seus ombros incomodamente, o escandoloso broche -  uma borboleta vagabunda, doirada e desdentada em agumas pedras imitando brilhante espetava o colo magro. Estava ridícula, sabia.
As quatro empregadas uniformizadas na porta de entrada estavam lá como estátuas  desde o começo da recepção, aventais pretos e longos por cima de calças pretas e longas.
Escorregou astutamente entre os convivas elegantes, pediu o casaquinho preto e sua bolsa às uniformizadas criaturas e preparou-se para a saída. Mandou chamar a prima discretamente, pediu um dinheiro emprestado para o táxi, e, ao ver as grades marrons do seu prédio ficou tão aliviada, quase feliz,  que resolveu dar cinco reais de gorjeta ao motorista, como recompensa ao serumano que a tinha devolvido ao seu mundo real. Boa noite, graças a Deus, muito obrigada.

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