segunda-feira, 30 de março de 2009

Detendo o tempo

Quase detendo o ritmo do vento frio com as palmas das mãos abertas, o homem caminhava, balançando o corpo e esquivando-se das esquinas geladas. Algumas memórias difusas abalavam o ritmo dos pés calçados em botas de uniforme militar. Por baixo do grosso agasalho de lã esverdeada, um fedor estranho habitava no corpo muito poucas vezes lavado. Da barba crescida e engalifinhada em pelos crespos e brancos pendiam restos de algum alimento há pouco catado em alguma lata de lixo vorazmente devorado, como é de praxe em alguns que comem raramente.Cena comum, nada que pudesse chamar a atenção: apenas mais um dos muitos mendigos que perambulam pelas noites na grande cidade. Lá com seus botões pensava "estou perto do viaduto" - o debaixo onde fez sua morada. Mais alguns passos e o aconchego dos velhos amigos, tão velhos e tão mendigos quanto ele, afastá-lo-ia dessa tristeza mórbida que se agarrara ao seu dia. Mais alguns passos. Tentou repetir para si mesmo a frase que funcionava como um grito de guerra nos momentos de desânimo, fraqueza, solidão: "vamos,..., força!" Foi quando deu-se conta, assustado, de que não lembrava do seu próprio nome. "Vamos...fulano!" Que fulano ele era, qual era o nome desse tal fulano, ele?Apressou o passo e coçou a barba com os poucos dedos que escapavam do abrigo da luva furada. Mais alguns passos, estava próximo, sabia. Logo logo estaria no lar do viaduto onde os amigos o aguardavam, preocupados.A noite engolfou, de repente, alguns vultos que estavam parados lá adiante. Era o viaduto aquela massa cinzenta? O vento frio e branco levou a paisagem, deixando apenas alguns papeis voando em círculos e um cheiro familiar de urina subiu ao seu nariz gelado. Apertou as mãos dentro do velho casaco. Lá dentro dos bolsos havia uns pedaços de papel higiênico que havia tirado de alguma banheiro público. Apertou-os com força. Estava com medo, mas continuava caminhando. O viaduto, naquela cidade enorme, podia ter ´mudado de lugar, pensou sorrindo de um pensamento tão tolo.

15:37 (5 horas atrás)
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olga
Poderia perguntar a alguem onde estaria o viaduto...mas qual o nome do viaduto? Esquecera. São tantos os viadutos em São Paulo. Perto de que, alguma referência, nada. Da memória não conseguia nada. Dobrou à esquerda numa rua que lhe parecia familar. Era muito escura e deserta. Muitos mendigos já estavam embrulhados em seus cobertores e dormiam exalando o cheiro de álcool e sujeira acumulada. Não eram seus amigos, certificou-se, olhando os rostos um a um na escuridão da marquise.Continuou caminhando, agora com um ar atônito e perdido. A enorme cidade nunca lhe fora estranha. Agora lhe parecia um outro planeta, a noite já não lhe sorria amável como sempre. Era medonha, estava assustado.Perdera o abrigo, perdera os amigos...Teria que esperar o dia seguinte, talvez alguma coisa clareasse juntamente com o dia, lá dentro daquela escuridão que agora jazia em sua mente.O mundo caiu na escuridão.Melhor esperar o sol. Bússola. Com certeza encontraria os seus amigos e, contente, com os olhos banhados de alegria, ante os olhares surpresos e indiferentes dos companheiros, diria:- Vocês não estão me reconhecendo? Sou o ...Fulano. O mundo caiu.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Pronto, era o que me faltava. Perdi um braço. Agora só tenho um, o esquerdo. O que fazer com um braço apenas? Não sei. Sei que quando eu tinha dois braços fazia um monte de coisas, ou...pensando bem, o que os meus braços faziam...não me lembro. Talvez fosse o lado da memória esse que estava em meu braço perdido. Como o perdi? Lembro-me vagamente que estava sentada na coxia, passou uma menina e perguntou quantos anos eu tinha. Respondi: mais de cem, por que? Ela disse: minha avó tem sessenta e quatro. Depois me lembro de algumas luzes muito fortes incidindo sobre meus olhos e eu queria tapar os olhos com as mãos mas não conseguia mexer os braços, ou melhor, não conseguia mexer o braço direito. Ou eu o mexia mas ele não obedecia ao comando. Ouvi sirenes e sons que nunca havia ouvido antes. Gritos e estrondos. Pensei, acho que pensei: até que enfim é o fim do mundo. Quando acordei (?) eram muitos dias depois daquele dia. Impossível lembrar. A memória tem limites. Foi há muito tempo.
Saí por uma fresta escura e úmida, e quente. A luz me cegava. Havia uma dor profunda no meu braço, mas era uma dor que não doía. Uma dor quente. Amiga. Amigo que morre e deixa saudades. Essa dor era o meu conforto. Quando ela passou eu sabia que não tinha mais o braço.
Não é um problema muito grande, já que estou conformada e uso o meu braço esquerdo, minha mão esquerda, tudo esquerdo, com maestria. Toco piano a uma mão, flauta e violão, canto e danço. Tudo meio macabro, mas faço, isso é que importa. Escrevo mal porque sou incompleta. Pinto mal porque sou incompleta, mas quem não é?