quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Semi-humana, subumana

O corpo está pesado. Tem que levantar-se e há muitas coisas a fazer;. Alguns fatos passados reviram-se na memória como ecos repetidos de um cântico de igreja que cantava há muito e músicas das memórias de sua mãe feriam seus ouvidos, pela voz trêmula e fraca. Desafinava. Como o seu corpo naquele dia. Em transe, levantou-se e tomou uma lata de energético, precisava. À noite passada, tinha tomado 30mg do remédio. Nem dormia, nem ficava acordada. No limbo do dia iria enfrentar esse desespero. Já sabia que derrubaria coisas no chão, que talvez batesse com o carro numa contramão ou numa árvore, que atropelaria algum pedestre, que um ladrão roubaria sua bolsa e começaria tudo de novo: BO, segundas-vias, tudo. E a família - "de novo?, de novo?" Sim, ela precisava de alguem que ficasse com ela nesses dias entorpecidos. Mas não podia deixar transparecer seus vícios: drogas e manias no calendário de testemunhas,

Nas noites em que ser revirava na cama, de um lado outro, às vezes desistia, lia alguma página de livro (tinha uma pilha de trinta na mesinha de cabeceira), ia até à geladeira várias vezes, mas nunca, nunca tinha algo comível. Só bebível: a famosa H2O. E se bebia muito, vinha a vontade de ir ao banheiro, começava tudo de novo. Inferno.

Estou muito só, pensava - mas não queria perturbar a felicidade de ninguem. Às vezes telefonava para uma amiga, e perguntava "tudo bem?", a amiga respondia "tudo ma-ra-vi-lho-so!, e você?" Não se atrevia a soletrar o maravilhoso, apenas dizia "tudo bem, estou indo". Então, ela não poderia  perturbar a maravilha das pessoas, o maravilhamento das pessoas. Não podia, como o Fernando Pessoa ficar "farta de semi-deuses". Ela era a única na contramão, na contralinha, na contraestação, na hora errada, a pessoa certa, ou a pessoa errada na hora certa. A única "semi-humana". Ninguem podia desconfiar, não. Só causaria dor e miséria onde chegasse, todos fugiam dos humanos.

O lema é ser feliz. Não havia tempo a ser desperdiçado com a miseria dos outros. Uma vez conheceu um rapaz que durante três horas e meia falou sobre uma namorada que tinha botado chifre nele. Macabéa escutou pacientemente, com os ouvidos bem abertos e ainda teve a misericórdia de aconselhá-lo, solidária com sua dor. Mais tarde, quando ela pensou: agora talvez ele pergunte algo sobre mim, ele, simplesmente chamou o garçom, dividiram a conta e foram embora. Putz, pelo menos a conta do pisquiatra não seria tão barata. Pequeno monstrinho semi-deus.

Vou cuidar da vida, como certas pessoas ainda dizem nos dias de hoje, pensou, enquanto alisava o casaquinho preto para tirar os pelos e cabelos que porventura ali estivessem, ou caspa, nunca se sabe. Descobriu uma pequena mancha de sujeira na manga esquerda, foi ao banheiro, esfregou o sabonte seco, depois um pouco de água, estava pronto o casaquinho preto. Mais uma jornada. Agarrou a bolsa enorme e foi-se.

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