segunda-feira, 10 de maio de 2010

Era noite alta. Macabéa acordou com uma dor familiar no estômago. A dor da fome. Levantou-se quase que à força, enrolou-se no casaquinho preto, pôs as velhas pantufas nos pés gelados e arrastou-se até à cozinha. A geladeira não funcionava,  só como armário. Abriu-a para tentar adivinhar alguma surpresa, mas que nada...só o macarrão de ontem, endurecido, e graças ao frio que estava fazendo, ainda em bom estado.

Encarou-o com coragem, acendeu o fogãozinho de duas bocas - ai que alívio, acendeu! - colocou um pouco da margarina sebenta no fundo da frigideira, mexeu a massa de lá para cá várias vezes, até que acreditou estar esquentada. Passou-a dali para o prato, jogou mais margarina por cima, um pouco de sal, abriu a janela da cozinha que dava para o paredão do presídio, encolheu as pernas e colocou o prato sobre os joelhos, sentada no banquinho alto. Ali era sua vista particular. Via vultos, figuras, cenas e paisagens nas manchas escurecidas do paredão sujo. Hoje ela viu uma sombra parecida com a dela própria, sentada com os joelhos levantados.

Era engraçada aquela moça Estava magra de  tanto comer macarrão, como se isso fosse possível. Macabéa Alice vive só de pão. A falta do espírito acende-lhe desejo de voltar a um certo tempo, quando era uma pessoa espiritual e acreditava no bem, no mal e nas pessoas. Acreditava. Aquele momento telúrico repetia-se inúmeras vezes na semana, por isso andava de olheiras negras: acordava com fome, comia o macarrão ou a lasanha engordurada e pensava em Deus, na sua família, nos filhos que tivera e que o mundo engolira.

Esvaziou o prato raspando com a colher o pouco de manteiga que ficara no fundo, mas continou lá, olhando as sombras, o passado, Deus, a familia, os filhos que o mundo havia tragado....

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