sábado, 26 de dezembro de 2009

"Você roubou meu personagem" (Boa-noite Cinderla)

Fechou o livro sobre a mesa de um jeito que poderia ser simples, mas não era. As maõs juntando-se como em  oração num ritual lento e solene, pensou mais alto do que deveria: Oh My God! Aquilo lembrava o gesto de um juiz que depois da leitura dos autos tem que declarar a sentença aos réus. As tensões que estiveram em suspensão de espírito durante a leitura do volumoso livro libertaram-se e puderam correr sem impedimento pelo rosto limpo de maquiagem.Acariciou com as pontas dos dedos a capa preta macia e suavemente ilustrada do livro. Uma dúvida: ultimamente parecia que as suas partes mais ínteriores estavam se desintegrando, como um bolo que desunera. Até mesmo as diarréias estavam tornando-se sistemáticas, incomodando-a, aborrecendo-a, faziam parte desse processo de desfazimento. Fragmentos de personalidades haviam-se aderido irremediavelmente à sua pele, à sua carne, tinham-se-lhe aderido até à medula, na raiz dos ossos. Eram uma. Divindade e deus. Respiravam o mesmo ar, dividiam os fantasmas e os sonhos que ditavam ambos delírios e razões.

No entanto, dessa vez as lágrimas eram só dela. Ela sentia realmente com ardor a morte da personagem. Do jeito que foi, como não sentir? Atrapalhando o tráfego, deitadinha na posição fetal...Como um filho que morreu num lugar distante e você não pode tocar o corpo, fazer respiração boca-a-boca, barganhar com o diabo - minha vida pela dele, - nada! Dessa vez o choro era real, embora aderido de outras dores, corpo já obeso de suas próprias.

Os óculos surgiram rapidamente vindos do resultado da busca frenética dentro da bolsinha preta, infinito depósito das versáteis máscaras.

Não entendia até a presente data o ritmo das suas lágrimas - elas corriam mais rapidamente do olho esquerdo do que do outro. Sempre percorriam mais rapido o caminho até os lábios. Absorta nesse estranho itinerário das lágrimas, ouviu um som estranho vindo da mesa ao lado. Um cachorro vomitando? Não, era um homem chorando. O corpo balançava visivelmente descontrolado. Aquilo era um choro impressionante, muito, mas muito superior àquele choro de terceira categoria que ela acabara de brecar de forma súbita ao sentir-se sobrepujada, usurpada. Olhou para a frente, para os lados, para trás como quem diz "ei, ninguem vai fazer nada?..." Os garçons, impávidos diante dos chorões de plantão, nem estavam aí para o homem. Não se preocupavam mais com esses chorões de bar. Ela mesma, nunca, nunca, tinha sido contemplada com a menor parcela de simpatia ou a minima mesura de misericórdia.

- Mentira. Os garçons eram sim, dignos dos maiores encômbios - nunca lhe deixavam de copo vazio. Isso era misericórdia.

Percebeu que o homem não estava sozinho. A mulher ao seu lado tentava desajeitadamente consolar o pobre coitado, mas ele recusava. A mão dela parecia vítima de um choque cada vez que tentava tocar o ombro dele. O caso era de lástima profunda. Sentiu inveja daquele choro. Uma súbita constatação da obscuridade do seu medíocre, hipócrita pranto, recolhou-a para trás da cortina dos óculos escuros.

O homem punha a mão sobre os olhos, não para impedir as lágrimas, mas sim para impedir que se formasse uma poça dágua debaixo da mesa. Os garçons continuavam impávidos, com seus olhos de garçom que só veem lá, muito lá adiante. Elas (ela e moça) sentiam-se vexadas. Mergulhou os olhos no fundo do copo de cerveja onde as bolhas pareciam lágrimas.

Num lance, lembrou que sabia consolar homens. Umas duas ou três vezes tinha sido bem sucedida. Então pensou que poderia aconselhar, que fizesse o seguinte: colocasse as maõs sobre os joelhos, abaixasse a cabeça, olhando fixamente para o chão, com ar consternado até que a cena terminasse. Assim faria a protagonista. Mesmo que seja a sua derrota, protagonize, filha! Ela mesma continuava com os olhos afundados no fundo do copo.

Dali a pouco o homem levantou-se, a moça o seguiu (houve algum acontecimento que ela perdeu - como pedir a conta, pagar a conta, etc). Atravessaram a rua. Bem defronte ao bar, naquela noite de domingo, acontecia um baile domingueiro. Era um baile da melhor idade, do tipo das antigas, quando o mancebo tirava a moçoila para dançar e eram felizes para sempre. Foi para lá que os dois se dirigiram.

-- Bom, pelo menos dançando a gente esquece, pensou ela, já filosofando sobre a vulgar arte de sobreviver ao pranto. Mas antes que adentrassem às cenas do último tango em Higienópolis, onde o rebanho já estava reunido em fila, o homem voltou subitamente para a mesa do bar, apanhou o sanduiche e o refrigerante sobre a mesa e voltou para a calçada das estrelas já abocanhando vorazmente o lanche. Ela agora esperava no primeiro degrau da escada da fama. Os dois refeitos, com certeza, depois iriam dançar até meia-noite.

Oras, bar é para isso mesmo - encher a cara e chorar. Mas o homem, já teria vindo de cara cheia? Sei lá, pensou alto demais. Desfez mentalmente a cena, deu de ombros, retirou os óculos escuros que recolocou na sua caixinha de pandorinha, pagou a conta, agarrou o casaquinho preto e foi-se embora toda disposta a percorrer os mil metros que a separavam do hotel. Esses episódios enchiam de energia seu próximo personagem.

The Book? Ôh, the book is on the table!

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