quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Salvada da enchente (a velha águia)

sobrevivente da enchente (velha águia)

O que sei não cabe num dedal, a diferença é que entre mortos e feridos, me escapei com vida e tenho-me aqui inteira, com meu casaquinho preto vestido do avesso, meio sem sentido, pasmada entre as palavras, enquanto observo um céu mudo de estrelas escancarando água. No entanto, o espanto e o imprevisto são armas de dois gumes postas na aljava dos cumes onde dorme a velha águia. Seus olhos não fecham para a escuridão.

Munida de um guarda-chuva furado, saiu da cobertura que a protegia e desabou na carreira pelo dorso da rua inundada. Era a águia. Pele de leão num esforço gigantesco de conter o vento que a arrastava pelas correntezas e açoitava-lhe os membros que moviam-se furiosamente como se nadassem.

Surreais, passavam ao seu lado o corpo de um cachorro, um velho morto boiando, sons de um grito e a corrente arrastava tambem móveis e utensílios. Era o fim, pensava, enquanto debatia-se furiosamente entre os destroços. Procurou e, do que era a casa, encontrou apenas agora a ponta da antena parabólica que ficou no telhado. Num impulso, agarrou-se à antena, enroscou as pernas nela, mas o vento fortíssimo levou-a com antena, casaquinho do avesso, guarda-chuva furado e tudo.

Nunca mais se soube dela, mas, provavelmente, se alguem se der ao trabalho de ir em busca do seu corpo, vai encontrá-lo no meio do Lixão, afiando os olhos entre os destroços da sobrevivência, sempre agarrada ao seu velho guarda-chuva furado.

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